Diário do Amapá - 10 e 11/04/2020

LUIZ MELO Diretor Superintendente ZIULANA MELO Diretora de Jornalismo Circulação simultânea em Macapá, Belém, Brasília e em todos os municípios do Amapá. Os conceitos emitidos em artigos e colunas são de responsabilidade dos seus autores e nem sempre refletem a opinião deste Jornal. Suas publicações são com o propósito de estimular o debate dos problemas amapaenses e do país. O Diário do Amapá busca levantar e fomentar debates que visem a solução dos problemas amapaenses e brasileiros, e também refletir as diversas tendências do pensamento das sociedades nacional e internacional. ZIULANA MELO Editora Chefe MÁRLIO MELO Diretor Administrativo DIÁRIO DE COMUNICAÇÕES LTDA. C.N.P.J: 02.401.125/0001-59 Administração, Redação e Publicidade Avenida Coriolano Jucá, 456 - Centro CEP 68900-101 Macapá (AP) www.diariodoamapa.com.br / / Possopegaresteaqui?”,pergunteiparaaminha mãe, em setembro passado, sabendo que ela diriasim.Aliás,eu játinhaatévestidoocardigã cinza elegante com uma estampa de minúsculos dia- mantes.Precisavadealgumacoisalegalparausarsobre a blusa semmanga que ela já tinha me dado e achava que meu moletom com capuz não combinaria com a entrevista de emprego que teria naquele mesmodia. “Pode ficar com ele”, disse ela, da cama. Perguntei “Tem certeza?” só por educação, pois sabiaquesim.Elanão ia vestir ocardigã nemnaquele dia,nememnenhumoutro.Naverdade,eramgrandes as chances de ela nunca mais voltar a usar as roupas queestavamnocloset.Minhamãeestavaemseu“uni- forme”costumeiro,umacamisetavelhacomum tema veganoecalça de moletomcomumfuronobumbum – seus “trapos” adorados –, que vinha usando prati- camente todo dia desde que recebera o diagnóstico do câncer em estágio 4, dez meses antes. Não havia necessidadededizer, masnósduassabíamosqueseus dias de usar cardigãs bacanas eram passado. Houve ocasiões, ao longo desses meses todos, nos quais teve de se vestir para ser vista pelo mundo exterior –as idas às casasdas minhas irmãspara que pudesse ver os netos, um almoço de aniversário que lheorganizamosemabril, umaexcursãoauma expo- sição de arte na pré-escola do meu sobrinho, com muita pintura a dedo e usos incrivelmente criativos para o macarrão. Nesses casos, ela usava sua roupa “boa”tradicional:uma blusa estilosa,umcardigãlon- go, jeans, bota de cano curto e um lenço colorido na cabeça para cobrir a careca que revelava sóem casa. Assimque voltava parasuaprivacidade,maisque depressa se trocava e voltava a usar os trapos. Ela gostava de se arrumar, mas, conforme ia pio- rando, mais confortável fazia questão de ficar. Quando setembro chegou, as únicas saídas da minha mãe eram as visitas oca- sionais ao pátio na parte de trás da casa, para se sentar ao sol da tarde, e mesmo essascomeçaramaescassear.Ficavacon- tente em poder passar os dias no sofá – que não demorou a ser substituído por uma cama de hospital. Estava morando com ela havia quase um ano e já sabia que as roupas dela todas me serviam(éramospraticamente domesmo tamanho), mas só naquele momentome ocor- reu que a doença dela basicamente dobrava o meuguarda-roupa. Obviamente,eu tinha sentimen- toscontraditóriosarespeitodessa ideia: termais rou- paserabom,masocâncerda minhamãeerapéssimo. É bemprovávelquehajauma palavra alemãque des- creva esse sentimento, mas não sei qual. Consegui o emprego para o qual fiz a entrevista, oquea deixoumuito feliz. Estava ficando maisdebi- litada. Tinha dias em que nem nos falávamos, pois ainda estava dormindo quando eu saía cedo para tra- balhar e quando eu voltava à noite. Fui investigar o closet dela embusca de outrocardigã. Pegueiquatro. Ela cada vez comia menos; estava sempre com dor. Eu lhe levava os comprimidos e passava creme naspernas.Umdia, sódecapricho, vestiuma de suas camisassociais,azulclarinha. Nãoerabemmeuestilo – eu preferia mais uma camiseta cinzenta e jeans –, mas usei mesmo assim. As visitas das enfermeiras se tornarammais fre- quentes; minha mãe estava tendo dificuldade em se alimentar. Logo depois disso ela já não conse- guia mais se levantar, nemmesmo para usar ocantinhoquearrumamos,alimesmo,quan- dopassouanãoconseguirirmaisaobanhei- ro. Umatarde,deiuma espiada noseuclo- set, atrásde um jeans preto, porque omeu tinha se desintegrado. O dela me servia perfeitamente. Experimentei mais oito, todos caíram feito uma luva. Dobrei tudo e desci com a pilha para o meu quarto. Estava ficando cada vez mais difícil manterumaconversacomelasemeumeper- guntar se conseguia entender o que eu estava falando; logo passou a ser impossível. Eu me agarravaaoconteúdodeseuclosetcomosefossem suas últimas chances de sobrevivência; se eu desse vidaaoseujeans,talvez,dealgumamaneira,pormágica, essa energia pudesse ser transferida. As roupas que eram uma parte dela agora eram um pedaço de mim, poisadistânciaentrenósduasiaficandocadavezmenor. Ela parouderespirar emumamanhã denovembro, minutos antes de eu sair para trabalhar. Tirando as peçasque já tinhapegado, seu closet continuaintacto. Ainda não tive coragem de fazer a faxina. Ver suas roupas–arrumadas, coloridas,penduradasem cabides chiquesde veludo–me dá aimpressãode fazê-laviva, como se dali a um segundo ela aparecesse de pé na minhafrente para escolher uma blusa bonita para sair. Aindadouumabuscaládevez emquando, procurando algo que ela costumava usar sobre o próprio corpo para cobrir o meu. Useiomesmocardigãda entrevistaparaseufuneral – e assim ter uma pequena parte dela comigo quando o resto já não pode mais estar. or que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas, engolindo a saliva dela? Afinal, oque querem duas pessoasquan- do se beijam na boca? Essa questão me vinha à mente quando criança. O que faz com que duas pessoas aparentemente queiram devorar uma à outra num beijo em que as salivas se misturam? Diretamente ligada a esta questão, uma outra que frequentava minhas indagações filosóficas infantis era: por que os homens chamammulheres de "gostosas"? Sendo "gostosa" uma expressão usada para comida, por que, afinal, os homens apli- cavam às mulheres? Comecemos por esta (apesar de não ser a ques- tão que me interessa propriamente). Estou longe de achar que a expressão "gostosa" seja errada ou "objetificante da mulher". Penso justamente o con- trário: "gostosa" é um termoperfeito para se aplicar a um certo tipo de mulher, aquelas que nos fazem perder a cabeça. Na verdade, o debate sobre a objetificação não me interessa. Afora o fato de que mulheres se sen- tem de fato gostosas quando gozam ou quando arrasam corações e vidas por aí, o termo "gostosa" é, exatamente, o que descreve a sensação que temos quando estamosdiante de mulheres que temos von- tade de "devorar sexualmente". O verbo "devorar" pode, facilmente, ser subs- tituído por "comer" ou "engolir". Lembro-me bem daprimeira vez que entendi osignificado de chamar uma mulher de gostosa. E esse entendimento tinha a ver com a vontade de comê-la ou engoli-la. A beleza dela se transmutava em desejo de assi- mila-la a mim mesmo. Todos esses verbos, assim como a expressão"gostosa", nos remetemà ideia de gosto e de alimentação. Mulheres têm gosto e nos alimentam. Para quem as aprecia, esse gosto não é unicamente "físico". O gosto de uma mulher é, também, metafísico. Por isso o poder de uma mulher inundar a vida de um homem: ele quer "comer" seu corpo e sua alma. Não é à toa que muitos antropólogos con- sideram o canibalismo indígena (o real, não o metafórico) um ato sublime e espiritual. E aí voltamos à minha primeira indagação filosófica infantil: por que temos vontade de beijar uma mulher na boca por horas a fio, engolindo a saliva dela? Claro que há algo relacionado ao "comer" a mulher desejada neste gesto. Ou "comer" qualquer pessoa desejada,obviamente.Nãovouperder tempo aqui com questões periféricas como "gênero". Mas, haveria algo de metafísico nisso? O filósofo e místico espanhol e mulçumano Ibn Arabi,nascidoemMúrcia,Espanha,em1165,emorto em Damasco, Síria, em 1240, escreveu uma obra (entreoutras)dedicadoaoamor("TratadodoAmor") em que discorre sobre a natureza de vários tipos de amor, desde o maisnatural, ao maisespiritual e mís- tico. Ibn Arabi é conhecido pelo impacto na tradição islâmica sufi e na mística islâmica como um todo.Umdaquelesantídotospara quempensa que o Islamismo seja uma religião de bár- baros. Aliás,o componentemístico doIslã é de uma beleza avassaladora. Vejamos um trecho específico sobre obeijoescritopelomístico islâmicoespa- nholmedieval: "Quandodoisamantesse beijam intimamente, cada um aspira a salivadooutro,quepenetra neles. Quando sebeijamese abraçam,a respiraçãodeum se expandenooutroeohálitoassimexalado penetra em ambos ao mesmo tempo". Estetrechoestá na partedo tratadoemque elediscorresobre asrelaçõesentreoamornatural e o espiritual. A ideia de Ibn Arabi é a de que ao engolir a saliva um do outro, ao respirar o hálito que sai da boca do outro e ao desejar de forma ardente esta mistura "pro- míscua" deelementoscorporais íntimos,osdoisaman- tes desejam estabelecer uma identidade única entre eles. Misturar saliva e hálitorepresenta, na análise poé- tica do místico espanhol, essa partilha de intimidade para além de qualquer abstração vazia. Quando desejo engolir a saliva de uma mulher ou respirarseuhálitocoma minhaboca,deforma ardente e apaixonada, estou dizendo a ela que gostaria de ser umcomela.Demefundir comela.Deassimilarabele- za que vejo nela e que me coloca nessa condição de desejar tê-lacomopartedomeucorpo.Por isso,o espí- rito em sua saliva me encanta.

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