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ODIÁRIO DO AMAPÁ OSEXTA-FEIRA 110 DE JANEIRO DE 2020

Opinião

1

jornal ,,

DIARIO AMAPA

LUIZ MELO

ZIULANA MELO

Direror Superimendeme Dirernra de Jornalismo

ZIULANA MELO

Editora Chefe

MÁRLIOMELO

DirNor Administrativo

COMPROMISSO COM ANOTICIA

DIÁRIO DE COMUNICAÇÕES LTDA.

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.diariodoamapa.com.br

Circulação simultânea em Macapá, Belém, Brasília e em todos os municípios do Amapá. Os

conceitos emitidos em artigos e colunas são de responsabilidade dos seus autores e nem

sempre refletem a opinião deste Jornal. Suas publicaçCies são com o propósito de estimular o

debate dos problemas amapaenses e do país. O Diário do Amapá busca levantar e fomentar

debates que visem a solução dos problemas amapaenses e brasileiros, e também refletir as

diversas tendências do pensamento das sociedades nacional e internacional.

e

ARI SCOTT - ROTEIRISTA DE PROGRAMAS DE TELEVISÃO

Articulista

As roupas da minha mãe

' '

Posso pegareste aqui?",perguntei paraa minha

mãe, em setembro passado, sabendo que ela

diria sim. Aliás, eu já tinha atévestidoocardigã

cinza elegante com uma estampa de minúsculos dia–

mantes. Precisava de alguma coisa legalparausarsobre

a blusa sem manga que ela já tinha me dado e achava

que meu moletom com capuz não combinaria com a

entrevista de emprego que teria naquele mesmo dia.

tava de se arrumar, mas,conforme ia piorando,

mais confortável fazia questão de ficar. Quan–

do setembro chegou, as únicas saídas da

minha mãe eram as visitas ocasionais ao

pátio na parte de trás da casa,para se sentar

ao sol da tarde,e mesmoessas começaram

se levantar, nem mesmo para usar o cantinho

que arrumamos, ali mesmo, quando passou a

não rnnseguir ir mais ao banheiro. Uma tarde,

dei uma espiada no seu closet, atrás de um

llillllllúllllll•'

jeans preto, porque o meu tinha se desinte–

t!I

grado. O dela me servia perfeitamente.

a escassear. Ficavacontente em pcxler

pas–

Experimentei mais oito,todoscaíram feito

uma luva. Dobrei tudo e desci com a pilha

"Pode ficar com ele", disse ela, da cama.

Perguntei "Tem certeza?" só por educação, pois

sabia que sim. Ela não ia vestir ocardigã nem naquele

dia, nem em nenhum outro.Na verdade, eram grandes

as chances de ela nunca mais voltar a usar as roupas

que estavam no doset. Minha mãe estava em seu "uni–

forme" costumeiro, uma camiseta velha com um tema

vegano e calça de moletom com um furo no bumbum

- seus "trapos" adorados - , que vinha usando prati–

camente todo dia desde que recebera o diagnóstico

do câncer em estágio 4, dez meses antes. Não havia

necessidade de dizer, masnós duas sabíamos que seus

dias de usar cardigãs bacanas eram passado.

sar os dias no sofá - que não demorou a

ser substituído poruma cama de hospital.

:.______.....

~~-

... para o meu quarto.

Estava ficando cada vez mais difícil

manter uma conversa com ela sem eu me

perguntar se conseguia entender o que eu

estava falando; logo passou a ser impossível.

Houve ocasiões, ao longo desses meses todos,nos

quais teve de sevestir para ser vista pelo mundoexte–

rior- as idas às casas dasminhas irmãs para que pudes–

se ver os netos, um almoço de aniversário que lhe

organizamos em abril, uma excursãoa uma exposição

de arte na pré-escola do meu sobrinho,commuita pin–

turaa dedo e usos incrivelmente criativospara omacar–

rão. Nesses casos, ela usava sua roupa "boa" tradicio–

nal:uma blusa estilosa, um cardigã longo,jeans, bota

de cano curto e um lenço colorido na cabeça para

cobrir a careca que revelava só em casa.

Assim que voltava para sua privacidade, maisque

depressa se trocava e voltava a usar os trapos. Ela gos-

Estava morando com ela havia quase

um ano e já sabia que as roupas dela todas

me serviam (éramos praticamente domesmo

tamanho), mas só naquele momento me ocor–

reu que a doença dela basicamente dobrava o

meu guarda-roupa. Obviamente, eu tinha senti–

mentos contraditórios a respeitodessa ideia: termais

roupas era bom, mas o câncer da minha mãe era

pés–

simo.

É

bem provável que haja uma palavra alemã

que descreva esse sentimento, mas não sei qual.

Consegui o emprego para o qual fiz a entrevista,

o que a deixou muito feliz. Estava ficando mais debi–

litada. Tinha dias em que nem nos falávamos, pois

ainda estava dormindo quando eu saía cedo para tra–

balhar e quando eu voltava à noite. Fui investigar o

closet dela em busca de outro cardigã. Peguei quatro.

Ela cada vez comia menos; estava sempre com

dor. Eu lhe levava os comprimidos e passava creme

nas pernas. Um dia, só de capricho, vestiuma de suas

camisas sociais, azul clarinha. Não era bemmeu estilo

- eu preferia mais uma camiseta cinzenta e jeans - ,

mas usei mesmo assim.

As visitas das enfenneiras se tomaram mais

fre–

quentes; minha mãe estava tendo dificuldade em se

alimentar. Logo depois dissoelajá nãoconseguia mais

''

Ter mais roupas era

bom,

mas o

câncer da

minha

mãe era

péssimo

''

e

LUIZ FELIPE PONDÉ - ESCRITOR, FILÓSOFO E ENSAÍSTA

Articulista

~:~~~~:~~~~! s~~~~~~~~·~• bjo~~

Afinal, o que querem duas pessoas quando se

Todos esses verbos, assim como a ,

\.;_)

beijam na boca? Essa questão me vinha à mente

expressão "gostosa", nos remetem à

!t:"

quando criança. O que faz com que duas pessoas

ideia de gosto e de alimentação.

~

aparentemente queiram devorar uma à outra num

Mu lheres têm gosto e nos alimentam.

~

beijo em que as salivas se misturam?

Para quem as aprecia, esse gosto não

é unicamente "físico".

Diretamente ligada a esta questão, uma outra

que frequentava minhas indagações filosóficas

O gosto de uma mulher é, também,

infantis era: por que os homens chamam mulheres

metafísico. Por isso o poder de uma

~

;-.

de "gostosas"? Sendo "gostosa" uma expressão

mulher inundar a vida de um homem: ele

usada para comida, por que, afinal, os homens

quer "comer" seu corpo e sua alma. Não é

aplicavam às mulheres?

à toa que muitos antropólogos consideram o

Comecemos por esta (apesar de não ser a

questão que me interessa propriamente). Estou

longe de achar que a expressão "gostosa" seja

errada ou "objetificante da mulher". Penso jus–

tamente o contrário: "gostosa" é um termo per–

feito para se aplicar a um certo tipo de mulher,

aquelas que nos fazem perder a cabeça.

Na verdade, o debate sobre a objetificação

não me interessa. Afora o fato de que mulheres

se sentem de fato gostosas quando gozam ou

quando arrasam corações e vidas por aí, o termo

"gostosa" é, exatamente, o que descreve a sen–

sação que temos quando estamos diante de

mulheres que temos vontade de "devorar sexual–

mente".

O verbo "devorar" pode, facilmente, ser subs–

tituído por "comer" ou "engolir". Lembro-me bem

da primeira vez que entendi o significado de cha–

mar uma mulher de gostosa. E esse entendimento

tinha a ver com a vontade de comê-la ou engoli-

canibalismo indígena (o real, não o metafórico)

um ato sublime e espiritual.

E aí voltamos à minha primeira indagação

filosófica infantil: por que temos vontade de bei–

jar uma mulher na boca por horas a fio, engolindo

a saliva dela?

Claro que há algo relacionado ao "comer" a

mulher desejada neste gesto. Ou "comer" qualquer

pessoa desejada, obviamente. Não vou perder tempo

aqui com questões periféricas como "gênero". Mas,

haveria algo de metafísico nisso?

O filósofo e místico espanhol e mulçumano Ibn

Arabi, nascido em Múrcia, Espanha, em 1165, e

morto em Damasco, Síria, em 1240, escreveu uma

obra (entre outras) dedicado ao amor ("Tratado do

Amor") em que discorre sobre a natureza de vários

tipos de amor, desde o mais natural, ao mais espi–

ritual e místico.

Ibn Arabi é conhecido pelo impacto na tradição

''

por que

os

homens chamam

mulheres de

"gostosas"?

Sendo

"gostosa"

uma

expressão

usada

para

comida

' '

Eu me agarrava ao conteúdo de seu closet como

se fossem suas últimas chances de sobrevivência;

se eu dessevida ao seujeans,talvez,de alguma manei–

ra, pormágica,essa energia pudesse ser transferida.

As

roupas que eram uma parte dela agora eramum pedaço

de mim, pois a distância entre nós duas ia ficando cada

vez menor.

Ela parou de respirar em uma manhã de novembro,

minutos antes de eu sairpara trabalhar. Tirandoas peças

que já tinha pegado, seu doset continua intacto. Ainda

não tive coragem de fazer a faxina. Ver suas roupas -

arrumadas, coloridas, penduradas em cabides chiques

de veludo - me dá a impressão de fazê-la viva, como se

dali a um segundo ela aparecesse de pé na minha frente

para escolheruma blusa bonita para sair.Ainda dou uma

busca lá de vez em quando, procurando algo que ela

costumava usarsobre o próprio corpo para cobriro meu.

Usei o mesmo cardigã da entrevista para seufuneral

- e assim ter uma pequena parte dela comigo quando o

resto já não pode mais estar.

islâmica sufi e na mística islâmica como um

todo. Um daqueles antídotos para quem pen–

sa que o Islamismo seja uma reUgião de

bárbaros. Aliás, o componente místico do

Islã é de uma beleza avassaladora.

Vejamos um trecho específico sobre

o beijo escrito pelo místico islâmico

espanhol medieval: "Quando dois aman–

tes se beijam intimamente, cada um aspi–

ra a saliva do outro, que penetra neles.

Quando se beijam e se abraçam, a respi–

ração de um se expande no outro e o hálito

assim exalado penetra em ambos ao mesmo

tempo".

Este trecho está na parte do tratado em que ele

discorre sobre as relações entre o amor natural e o

espiritual.

A ideia de Ibn Arabi é a de que ao engolir a saliva

um do outro, ao respirar o hálito que sai da boca do

outro e ao desejar de forma ardente esta mistura "pro–

míscua" de elementos corporais íntimos, os dois

amantes desejam estabelecer uma identidade única

entre eles.

Misturar saliva e hálito representa, na análise

poética do místico espanhol, essa partilha de intimi–

dade para além de qualquer abstração vazia.

Quando desejo engolir a saliva de uma mulher

ou respirar seu hálito com a minha boca, de forma

ardente e apaixonada, estou dizendo a ela que gostaria

de ser um com ela. De me fundir com ela. De assi–

milar a beleza que vejo nela e que me coloca nessa

condição de desejar tê-la como parte do meu corpo.

Por isso, o espírito em sua saliva me encanta.